ESPÍRITO DA REVOLUÇÃO CONSTITUCIONALISTA
Os grandes acontecimentos
históricos dependem de uma variegada multiplicidade de fatores e motivos, nem
sempre sendo possível apresentar a sua motivação determinante.
É
o que acontece com a revolução constitucionalista de 1932, para a qual Célio
Debes indica três ordens de causas principais, a política, a militar e a
cívica, com predomínio desta.
Não
posso discordar dessa análise, mas talvez seja necessário completá-la sob
outros prismas, a partir da vivência pessoal que tive dessa estupenda
insurreição.
Era,
então, estudante do 2º ano do curso de bacharelado da Faculdade de Direito do
Largo de São Francisco, ainda instituto federal, o mesmo fundado por D. Pedro
I, em 1827, conjuntamente com o de Olinda, depois transferido para o Recife.
Em
confronto com a pletora atual de alunos matriculados em dezenas de instituições,
formávamos um reduzido grupo de jovens congregados no único estabelecimento
existente destinado ao estudo do Direito. A rigor, não se tratava de uma Casa
que só cuidasse de Jurisprudência, pois, ainda não havendo universidades com
ensino de Filosofia, Letras, Economia, ou Sociologia, era a única opção para
quem tivesse vocação para o cultivo de ciências humanas e sociais.
Era
natural que, em tal ambiente, ao lado de idéias jurídicas, fervilhassem debates
sobre os grandes problemas da civilização, em todos os domínios do espírito,
indo os jovens muito além das preleções dos professores catedráticos, - não
raro apegados à letra dos códigos e das sentenças dos tribunais.
No
fundo, interessavam-nos mais os legados poéticos de Alvares de Azevedo e Castro
Alves, bem como as pregações políticas de Rui Barbosa e Joaquim Nabuco. Não que
não nos interessasse a problemática jurídica, mas sentíamos mais imperiosa a
necessidade de mudar as instituições, de traçar novos rumos para a sociedade e
o Estado, sobretudo depois que a revolução de 1930 – cujas raízes remontavam ao
levante inovador de 1922, em Copacabana - abrira horizontes que nos pareciam
ameaçados pelo retorno à rotina dos antigos partidos da República Velha.
Foi,
nessa época, que os moços passaram a viver com maior paixão as teorias
político-sociais em conflito, inconformados todos com tímidas soluções
liberais, por demais vinculadas a questões eleitorais, como, por exemplo, a do
voto secreto.
Havia,
pois, um natural contraste de ideologias, sobretudo no tocante ao socialismo,
alguns se inspirando no marxismo, e outros o repelindo por suas diretrizes
materialistas, sem se falar na repercussão que já vinham tendo no Brasil as
doutrinas corporativistas, de cunho autoritário ou democrático.
No
meu caso pessoal, minha crise marxista foi superada pela idéia do “socialismo
liberal” pregado por Carlos Rosselli, e que, várias décadas depois, iria ter a
simpatia de Norberto Bobbio... Foi nessa posição que me alistei na revolução
constitucionalista, na qual via um meio de assegurar o pluralismo das
ideologias em um quadro democrático.
O
movimento de 1932, na realidade, não tinha conteúdo ideológico, reunindo
adéptos de todas as correntes políticas, desde os conservadores impedernidos do
antigo perrepismo até os que, sem saber direito o que queriam, ansiavam por
profundas mudanças na política nacional. Alegam alguns esquerdistas que o
operariado se manteve alheio ao referido movimento, que seria tipicamente da
classe média, mas essa asserção não corresponde à realidade, tal o número de
operários, que, no campo e nas cidades, o apoiaram.
A
minha convicção é a de que no episódio da revolução constitucionalista o que
predominava era o ideal democrático como tal, sem adjetivo, sem
colorido ideológico, mas como esperança comum de um regime que viesse assegurar
a todos o direito de escolher livremente o próprio caminho. Isto explica o seu
caráter não classista, bem como a entusiástica tomada de posição da mulher
paulista de todas as categorias sociais, colocando-se na vanguarda dos
acontecimentos, a começar pela marcha inicial pela família e pela democracia.
O
que houve, em 1932, foi um levante que não se compreende sem se levar em conta
o espiritualismo que nele predominou. Nada tem mais significado e força do que
um ideal aberto a uma multiplicidade de vias que conduzam à conquista da
liberdade de pensar e de agir. É esse sentido espiritualista que nos
faz compreender a decisão de doar as próprias alianças matrimoniais para serem
fundidas em prol da causa comum.
Não
se trata, pois, apenas de civismo, mas de algo mais profundo, de um
clima espiritual de solidariedade que assinalou o ponto culminante da
Revolução, quando já se pressentia a vitória das forças governamentais da
ditadura que se tornara beneficiária do processo revolucionário começado em
1922, fazendo-nos retroagir ao autoritarismo castilhista que imperou no Rio
Grande do Sul.
É
por essa razão que foi só no plano material imediato que a Revolução de 1932
foi vencida. Na realidade, ela implantou no País um sentido de democracia
necessária, tão forte que Getúlio Vargas e seus companheiros não
puderam resistir à reivindicação constitucionalista generalizada, culminando na
Constituição de 1934, a qual teve vida curta por seu hibridismo, com uma
postiça representação classista na Câmara dos Deputados, e também por se
travarem infelizes competições partidárias que iriam conduzir ao Estado Novo,
em 1937, quando teria início uma nova fase política atormentada pelo conflito
das ideologias até o sombrio desfecho de 1964.
Já
agora, com três quatriênios sucessivos de democracia representativa, poder-se-á
dizer que, tudo somado, vencedor foi o movimento paulista de 1932.
17/07/2004
Fonte: www.miguelreale.com.br
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